29 de julho de 2011

Fernando Pessoa

 

I

Beber a vida num trago, e nesse trago

Todas as sensações que a vida dá

Em todas as suas formas [...]

Dantes eu queria

Embeber-me nas árvores, nas flores,

Sonhar nas rochas, mares, solidões.

Hoje não, fujo dessa idéia louca:

Tudo o que me aproxima do mistério

Confrange-me de horror. Quero hoje apenas

Sensações, muitas, muitas sensações,

De tudo, de todos neste mundo — humanas,

Não outras de delírios panteístas

Mas sim perpétuos choques de prazer

Mudando sempre,

Guardando forte a personalidade

Para sintetizá-las num sentir.

Quero

Afogar em bulício, em luz, em vozes,

— Tumultuárias [cousas] usuais —

o sentimento da desolação

Que me enche e me avassala.

Folgaria

De encher num dia, [...] num trago,

A medida dos vícios, inda mesmo

Que fosse condenado eternamente —

Loucura! — ao tal inferno,

A um inferno real.

II

Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,

Como me amarga n'alma essa alegria!

Nem em criança, ser predestinado,

Alegre eu era assim; no meu brincar,

Nas minhas ilusões da infância, eu punha

O mal da minha predestinação.

Acabemos com esta vida assim!

Acabemos! o modo pouco importa!

Sofrer mais já não posso. Pois verei —

Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem

Toda a extensão da felicidade,

Gozá-la?

Ferve a revolta em mim

Contra a causa da vida que me fez

Qual sou. E morrerei e deixarei

Neste inundo isto apenas: uma vida

Só prazer e só gozo, só amor,

Só inconsciência em estéril pensamento

E desprezo [...] Mas eu como entrarei naquela vida?

Eu não nasci para ela.

III

Melodia vaga

Para ti se eleva

E, chorando, leva

O teu coração,

Já de dor exausto,

E sonhando o afaga.

Os teus olhos, Fausto,

Não mais chorarão.

IV

Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,

Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...

Sou qualquer cousa de exterior apenas,

Consciente apenas de já nada ser...

Pertenço à estúrdia e à crápula da noite

Sou só delas, encontro-me disperso

Por cada grito bêbedo, por cada

Tom da luz no amplo bojo das botelhas.

Participo da névoa luminosa

Da orgia e da mentira do prazer.

E uma febre e um vácuo que há em mim

Confessa-me já morto... Palpo, em torno

Da minha alma, os fragmentos do meu ser

Com o hábito imortal de perscrutar-me.

V

Perdido

No labirinto de mim mesmo, já

Não sei qual o caminho que me leva

Dele à realidade humana e clara

Cheia de luz [...] alegremente

Mas com profunda pesadez em mim

Esta alegria, esta felicidade,

Que odeio e que me fere [...]

Sinto como um insulto esta alegria

- Toda a alegria. Quase que sinto

Que rir, é rir - não de mim, mas, talvez,

Do meu ser.

VI

Toda a alegria me gela, me faz ódio.

Toda a tristeza alheia me aborrece,

Absorto eu na minha, maior muito Que outras

[...]

Sinto em mim que a minha alma não tolera

Que seja alguém do que ela mais feliz;

O riso insulta-me, por existir;

Que eu sinto que não quero que alguém ria

Enquanto eu não puder. Se acaso tento

Sentir, querer, só quero incoerências

De indefinida aspiração imensa,

Que mesmo no seu sonho é desmedida ...

VII

tua inconsciência alegre é uma ofensa

para mim. O seu riso esbofeteia-me!

Tua alegria cospe-me na cara!

Oh, com que ódio carnal e espiritual

escarro sobre o que na alma humana

Fria festas e danças e cantigas...

Com que alegria minha, cairia

Um raio entre eles! Com que pronto

Criaria torturas para eles

Só por rirem a vida em minha cara

E atirarem à minha face pálida

O seu gozo em viver, a poeira — que arda

Em meus olhos — dos seus momentos ocos

De infância adulta e tudo na alegria!

Ó ódio, alegra-me tu sequer!

Faze-me ver a Morte. roendo a todos,

Põe-me ria vista os vermes trabalhando

Aqueles corpos! [...]

VIII

Triste horror d'alma, não evoco já

Com grata saudade, tristemente,

Estas recordações da juventude!

Já não sinto saudades, como há pouco

Inda as sentia. Vai-se-me embotando,

Co'a força de pensar, contínuo e árido,

Toda a verdura e flor do pensamento.

Ao recordar agora, apenas sinto,

Como um cansaço só de ter vivido,

Desconsolado e mudo sentimento

De ter deixado atrás parte de mim,

E saudade de não ter saudade,

Saudades dos tempos em que as tinha.

Se a minha infância agora evoco, vejo

- Estranho! - como uma outra criatura

Que me era amiga, numa vaga

Objetivada subjetividade.

Ora a infância me lembra, como um sonho,

Ora a uma distância sem medida

No tempo, desfazendo-me em espanto;

E a sensação que sinto, ao perceber

Que vou passando, já tem mais de horror

Que tristeza [...]

E nada evoca, a não ser o mistério

Que o tempo tem fechado em sua mão.

Mas a dor é maior!

IX

Ó vestidas razões! Dor que é vergonha

E por vergonha de si-própria cala

A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa

Porca animalidade do animal,

Que se diz metafísica por medo

A saber-se só baixa ...

Ó horror metafísico de ti!

Sentido pelo instinto, não na mente!

Vil metafísica do horror da carne,

Medo do amor...

Entre o teu corpo e o meu desejo dele

'Stá o abismo de seres consciente;

Pudesse-te eu amar sem que existisses

E possuir-te sem que ali estivesses!

Ah, que hábito recluso de pensar

Tão desterra o animal que ousar não ouso

O que a [besta mais vil] do mundo vil

Obra por maquinismo.

Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,

Quanto em mim é instinto, que não sei

Com que gestos ou modos revelar

Um só instinto meu a olhos que olhem ...

Deus pessoal, deus gente, dos que crêem,

Existe, para que eu te possa odiar!

Quero alguém a quem possa a maldição

Lançar da minha vida que morri,

E não o vácuo só da noite muda

Que me não ouve.

X

O horror metafísico de Outrem!

O pavor de uma consciência alheia

Como um deus a espreitar-me!

Quem me dera

Ser a única [cousa ou] animal

Para não ter olhares sobre mim!

XI

Um corpo humano!

Às vezes eu, olhando o próprio corpo,

Estremecia de terror ao vê-lo

Assim na realidade, tão carnal.

XII

Sinto horror

À significação que olhos humanos

Contém...

Sinto preciso

Ocultar o meu íntimo aos olhares

E aos perscrutamentos que olhares mostram;

Não quero que ninguém saiba o que sinto,

Além de que o não posso a alguém dizer...

XIII

Com que gesto de alma

Dou o passo de mim até à posse

Do corpo de outros, horrorosamente

Vivo, consciente, atento a mim, tão ele

Como eu sou eu.

XIV

Não me concebo amando, nem dizendo

A alguém "eu te amo" — sem que me conceba

Com uma outra alma que não é a minha

Toda a expansão e transfusão de vida

Me horroriza, como a avaro a idéia

De gastar e gastar inutilmente —

Inda que no gastar se [extraia] gozo.

XV

Quando se adoram, vividos,

Dois seres juvenis e naturais

Parece que harmonias se derramam

Como perfumes pela terra em flor.

Mas eu, ao conceber-me amando, sinto

Como que um gargalhar hórrido e fundo

Da existência em mim, como ridículo

E desusado no que é natural.

Nunca, senão pensando no amor,

Me sinto tão longínquo e deslocado,

Tão cheio de ódios contra o meu destino. -

De raivas contra a essência do viver.

XVI

Vendo passar amantes

Nem propriamente inveja ou ódio sinto,

Mas um rancor e uma aversão imensos

Ao universo inteiro, por cobri-los.

XVII

O amor causa-me horror; é abandono,

Intimidade...

... Não sei ser inconsciente

E tenho para tudo [...]

A consciência, o pensamento aberto

Tornando-o impossível.

E eu tenho do alto orgulho a timidez

E sinto horror a abrir o ser a alguém,

A confiar n’alguém. Horror eu sinto

A que perscrute alguém, ou levemente

Ou não, quaisquer recantos do meu ser.

Abandonar-me em braços nus e belos

(Inda que deles o amor viesse)

No conceber do todo me horroriza;

Seria violar meu ser profundo,

Aproximar-me muito de outros homens.

Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —

Horroriza-me: acostumei-me cedo

Nos despimentos do meu ser

A fixar olhos pudicos, conscientes.

Do mais. Pensar em dizer "amo-te"

E "amo-te" só — só isto, me angustia...

XVIII

[...] eu mesmo

Sinto esse frio coração em mim

Admirado de ser um coração

Tão frio está.

XIX

Seria doce amar, cingir a mim

Um corpo de mulher, mais frio e grave

e feito em tudo, transcendentalmente

O pensamento agrada-me, e confrange-me

Do terror de perto, e [junto]

Em sensação ao meu, um outro corpo.

Gelada mão misteriosa cai

Sobre a imaginação [...]

XX

É isto o amor? Só isto? [...]

Sinto ânsias, desejos,

Mas não com meu ser todo. Alguma cousa

No íntimo meu, alguma cousa ali

— Fria, pesada, muda — permanece.

[P'ra] isto deixei eu a vida antiga

Que já bem não concebo, parecendo

Vaga já.

Já não sinto a agonia muda e funda

Mas uma, menos funda e dolorosa,

[Bem] mais terrível raiva [...]

De movimentos íntimos, desejos

Que são como rancores.

Um cansaço violento e desmedido

De existir e sentir-me aqui, e um ódio

Nascido disto, vago e horroroso,

A tudo e todos...

XXI

— Amo como o amor ama.

Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.

Que queres que te diga mais que te amo,

Se o que quero dizer-te é que te amo?

Quando te falo, dói-me que respondas

Ao que te digo e não ao meu amor.

Ah! não perguntes nada; antes me fala

De tal maneira, que, se eu fora surda,

Te ouvisse todo com o coração.

Se te vejo não sei quem sou: eu amo.

Se me faltas [...]

... Mas tu fazes, amor, por me faltares

Mesmo estando comigo, pois perguntas —

Quando é amar que deves. Se não amas,

Mostra-te indiferente, ou não me queiras,

Mas tu és como nunca ninguém foi,

Pois procuras o amor pra não amar,

E, se me buscas, é como se eu só fosse

Alguém pra te falar de quem tu amas.

Quando te vi amei-te já muito antes:

Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci pra ti antes de haver o mundo.

Não há cousa feliz ou hora alegre

Que eu tenha tido pela vida fora,

Que o não fosse porque te previa,

Porque dormias nela tu futuro.

E eu soube-o só depois, quando te vi,

E tive para mim melhor sentido,

E o meu passado foi como uma 'strada

Iluminada pela frente, quando

O carro com lanternas vira a curva

Do caminho e já a noite é toda humana.

Quando eu era pequena, sinto que eu

Amava-te já longe, mas de longe...

Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!

— Compreendo-te tanto que não sinto,

Oh coração exterior ao meu!

Fatalidade, filha do destino

E das leis que há no fundo deste mundo!

Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto

De o sentir...?

XXII

Pra que te falar? Ninguém me irmana

Os pensamentos na compreensão.

Sou só por ser supremo, e tudo em mim

É maior.

XXIII

Reza por mim! A mais não me enterneço.

Só por mim mesmo sei enternecer-me,

Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive.

Reza por mim, por mim! Eis a que chega

A minha tentativa [em] querer amar.

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