25 de julho de 2011

Quarto Tema: O Temor da Morte

Fernando Pessoa

 

O Temor da Morte

I

Que a morte me desmembre em outro, e eu fique

Ou o nada do nada ou o de tudo

E acabo enfim esta consciência oca

Que de existir me resta.

Sinto um tropel esfuziante e quente

De propósitos-sombras, e de impulsos

Transbordando do cálix da consciência

Para cima da vida...

II

... só um sentimento

De desejar eterna quietação,

Ambição vaga de fechar os olhos

E vaga esp'rança de não mais abri-los.

Ânsia cansada de não mais viver;

Meu cérebro esvaído não lamenta

Nem sabe lamentar. Tumultuárias

Idéias mistas do meu ser antigo

E deste, surgem e desaparecem

Sem deixar rastos à compreensão.

Já deslumbradas, vãs, incoerentes,

Amargas, [vagas] desorganizações

Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!

Sinto-te os passos! Sinto-te! O teu seio

Deve ser suave e ouvir teu coração

Como uma melodia estranha e vaga

Que enleva até ao sono e passa o sono.

Nada. Já nada [passa] — nada, nada...

Vai-te, Vida!

III

Ah, o horror de morrer!

E encontrar o mistério frente a frente

Sem poder evitá-lo, sem poder...

IV

Gela-me a idéia de que a morte seja

O encontrar o mistério face a face

E conhecê-lo. Por mais mal que seja

A vida e o mistério de a viver

E a ignorância em que a alma vive a vida,

Pior me [relampeja] pela alma

A idéia de que enfim tudo será

Sabido e claro...

Pudesse eu ter por certo que na morte

Me acabaria, me faria nada,

E eu avançara para a morte, pávido

Mas firme do seu nada.

V

...gela-me apenas, muda,

A presença da morte que triplica

O sentimento do mistério em mim.

VI

Mistério, vai-te, esmagas-me! Ah, partir

Esta cabeça contra aquele muro

E tombar morto. Mas a morte, a morte,

Ali, como a temo! Para onde fugir?

Na vida nem na morte tenho abrigo.

Maldita seja... Quem? Quem faz o mal,

Este que sinto! Ah, mas já [nem] posso

Amaldiçoar...

VII

Não é o horror à morte, porque raie

Nela o mistério em mim, nem venha nela

Ou o acabar-me ou o continuar-me

Não. Não é minha alma que os sineiros

Rebatem medos pelo que hei de ser.

É a minha carne que em minha alma grita

Horror à morte, carnalmente o grita,

Grita-o sem consciência e sem propósito,

Grita-o sem outro medo do que o medo.

Um pavor corporado, um pavor frio

Como uma névoa, um pavor de todo eu

Subindo à tona intelectual de mim.

VIII

O animal teme a morte porque vive,

O homem também, e porque a desconhece;

Só a mim é dado com horror

Temê-la, por lhe conhecer a inteira

Extensão e mistério, por medir

O [infinito] seu de escuridão.

Dor que transcende o verbo e o sentimento

Criando um sentimento para si

Do qual o Horror é apenas a aparência

Pensável e sensível do exterior.

Uns têm — e é sofrer — o duvidar:

Há Deus ou não há Deus? Há alma ou não?

Eu não duvido, ignoro. E se o horror

De duvidar é grande, o de ignorar

Não tem nome nem entre os pensamentos.

IX

Medo da morte, não; horror da morte.

Horror por ela ser, pelo que é

E pelo inevitável.

X

... ao condenado

Inda no seu horror lhe luz ao menos

Uma sombra desesperada d'esperança;

Inda o horror que espera não é aquele

Horror da morte — não tem o intenso

Arrastar da inevitabilidade

Que a morte tem. A mim nem esperança

Nem suspeita de sombra de esperança

Ocorre, mas o horror completo e negro.

Isso que lhe aparece qual resgate

É o que eu temo!

XI

Ah, não me ofendas com palavras vãs

O horror do pensamento. Ninguém

Como eu teve este horror. Nem poderá

Nas veias e na alma do seu sangue

Tê-lo tão íntimo [...]

Tão feito um comigo.

As figuras do sonho não conhecem

O sonho [...] de que são figuras,

Porque o mundo não só é [já] sonhado

Mas é dentro dum sonho um [sonho] real,

Em que sonhados são os sonhadores

Também.

Não poder apagar esta tortura

Não poder despegar-me deste Ser;

Não poder esquecer-me desta vida ...

XII

Só uma cousa me apavora

A esta hora, a toda a hora:

É que verei a morte frente a frente

Inevitavelmente.

Ah, este horror como poder dizer!

Não lhe poder fugir. Não podê-lo esquecer.

E nessa hora em que eu e a Morte

Nos encontrarmos

O que verei? O que saberei?

Horror! A vida é má e é má a morte

Mas quisera viver eternamente

Sem saber nunca [...] isso que a morte traz [...]

Que o tempo cesse!

Que pare e fique sempre este momento!

Que eu nunca me aproxime desse

Horror que mata o pensamento!

Envolvei-me, fechai-me dentro em vós

E que eu não morra nunca.

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